Questão das mais palpitantes no direito moderno é o chamado abandono afetivo. O que, de fato, pode ser considerado abandono afetivo? Quais as consequências legais que envolvem este problema? O que têm decidido os tribunais brasileiros a este respeito? Neste sucinto artigo buscaremos abordar estas e outras questões sobre este tema tão interessante e atual.
Decisão das mais importantes na vida do indivíduo é sobre ter ou não um filho. Mesmo para quem já se decidiu pela paternidade, ainda deve ponderar com cuidado qual o momento mais adequado na sua vida para realizar este desejo. Isto porque o ordenamento jurídico pátrio prevê consequências jurídicas relevantes para a paternidade.
A Constituição Federal de 1988 assim normatiza a família:
Art.226 – A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.
§7º – Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas. (grifos nossos).
Grifamos três itens de suma importância no regramento constitucional da família: a dignidade da pessoa humana, a paternidade responsável e o livre planejamento familiar.
Quando a Constituição fala que o planejamento familiar é livre, evidentemente estabelece que não possa haver qualquer imposição ou restrição, mesmo do Estado, ao casal, quanto à decisão de ter ou não filhos.
Por outro lado, uma vez decidindo pela paternidade, nasce, automaticamente, uma gama de deveres legais para com o nascituro. Não é à toa que a Carta Magna fala em dignidade da pessoa humana e em paternidade responsável ao falar da família e do planejamento familiar. Se o planejamento familiar é livre, a paternidade não! Neste sentido a citação da jurista Maria Berenice Dias:
“Não mais se podendo ignorar essa realidade, passou-se a falar em paternidade responsável. Assim, a convivência dos filhos com os pais não é um direito do pai, mas direito do filho. Com isso, quem não detém a guarda tem o dever de conviver com ele. Não é direito de visitá-lo, é obrigação de visitá-lo (DIAS, M. 2007, p. 608).“
Não pode o pai ou a mãe negligenciar os deveres de cuidado, atenção, presença, convívio, educação eacompanhamento sócio-psicológico na formação da criança, sem que isso implique em graves danos ao menor e em violação de deveres constitucionais e infra-constitucionais. Uma vez gerada a criança, não é facultado se arrepender da livre opção que exerceram, simplesmente abandonando ou ignorando aquele ser que, diga-se de passagem, não pediu para vir ao mundo!
Com que direito o pai ou a mãe colocará sobre os ombros da sociedade toda a responsabilidade relacionada aos deveres de cuidado de uma criança que foi livre opção sua? Ademais, os danos psicológicos e à personalidade que a ausência dogenitor deixará no ser em formação são irreparáveis!
Evidente que quando falamos aqui do dever de convívio, não nos referimos exclusivamente ao convívio diário, até porque existem pais separados ou que nunca se uniram, mas do dever de acompanhamento e convívio próximo, orientando, protegendo, oferecendo suporte psicológico e segurança indispensáveis à formação da criança e do adolescente.
O tipo de abandono que tratamosneste artigo é apenas o abandono afetivo, que pode ocorrer mesmo que não exista o abandono material. Em outras palavras, os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável lançam deveres legais para além do mero atendimento material.Aliás, o problema também não se circunscreve ao abandono de filhos pelos pais, também existindo de filhos maiores para com os pais, especialmente idosos.
Muito se discutiu na doutrina jurídica e nos tribunais brasileiros sobre a existência ou não do dever de indenizar o filho vítima do abandono afetivo. Até recentemente o entendimento do Superior Tribunal de Justiça era o que não cabia indenização pelo dano moral decorrente do abandono afetivo, em razão do entendimento de que o sentimento, afeto,por ser subjetivo e espontâneo, não comportaria a existência de uma obrigação legal a tal respeito.
No nosso entendimento, grande parte da celeuma e da dificuldade na perfeita compreensão do tema provém da equivocada nomenclatura utilizada. O termo “abandono afetivo” não representa corretamente o problema em análise, posto que o situa apenas no âmbito subjetivo do afeto. Melhor seria utilizar uma designação que trouxesse melhor a ideia do que há de objetivo na questão, como abandono de cuidado paterno-filial.
Em recente e histórica decisão, o mesmo STJ reviu esse posicionamento, sem discordar totalmente dele. A Ministra Nancy Andrighi proferiu voto lapidar no julgamento do REsp1.159.242, condenando o pai comprovadamente omisso a indenizar a filha em R$200.000,00 pontuando que, embora o afeto seja subjetivo e espontâneo, os deveres de cuidado são objetivos e exigíveis legalmente a partir do ordenamento jurídico posto.
Vejamos trechos da referida decisão:
[…] é fundamental para a formação do menor e do adolescente, pois não se discute mais a mensuração do intangível – o amor – mas, sim, a verificação do cumprimento, descumprimento, ou parcial cumprimento, de uma obrigação legal: cuidar (BRASIL, Superior Tribunal de Justiça, 2012).”
“Negar ao cuidado o status de obrigação legal importa na vulneração da membrana constitucional de proteção ao menor e adolescente, cristalizada, na parte final do dispositivo citado (art. 227): “(…) além de colocá-los a salvo de toda a forma de negligência (…)”. Alçando-se, no entanto, o cuidado à categoria de obrigação legalsupera-se o grande empeço sempre declinado quando se discute o abandono afetivo – a impossibilidade de se obrigar a amar. (BRASIL, Superior Tribunal de Justiça, 2012).”
Como visto,um dos grandes méritos da revolucionária decisão da Ministra Nancy é o de justamente romper com a compreensão do problema sob o ponto de vista unilateraldo afeto, quando ela reconhece para além dele, deveres de cuidado do genitor para com o filho em consonância com os princípios da paternidade responsável e da dignidade da pessoa humana. Em suma, concluiremos utilizando uma frase emblemática da própria decisão do STJ: “Amar é uma faculdade, cuidar é um dever”.